Bem-Vindos

Sejam bem-vindos ao espaço onde através da brincadeira e do conhecimento nos expandimos como seres humanos. O local onde a Família não se resume aos laços de sangue mas essencialmente aos laços do Coração.



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06 dezembro, 2010
por Rosa Pires

Pê é di pai, preto e pedro.

Pai pedro tem nariz qui funga e olho qui chóra. Preto tem sorriso bunito e dente branco, bunda dengosa e jeito di malandrice. Pai preto trabalha duro e sustenta família, protege mulhé mãe e minino qui tá pra nascê. Tem pele iscura di sol e dêdu di trabalhadô. Veste camisa branca di paz, calça de macacão e chinelo nus pé. No discanso, Pedro midita di Buddha e entoa mantra di Metta – diz qui manda amô para todo o sê e fica com mente tranquila. Di dia quenti, pedro põe tábua nus pé e navega nus onda. Faz brincadeira como criança alegri e mixida e fica nus água feito peixi nadadô. Pai tem coração mole e braço duro pra cavá terra di legumi, levanta seis madrugada e planta tomáti nus vaso di lá fora. Tem língua qui gosta di sabô forti qui nem gingibri com malagueta e dois punhado si sal. Di noiti qui não vai pra trabalhá, abana cucurutu no som di música kizomba, põe braços no ah e perna de cócora.
Pê é di pai meigo qui tem sempre abraço pronto di corpo inteiro. Quando vê amigo triste, manda beijo e dá conselho. Quando mulhé pede ternura, pedro pega no colo. Mão forte, alma sensível, pé di raiz, pê chora rio di emoção. Tem boca qui diz coisa bunita e lábio di beijo bom. Mulhé fez cabeça di pê e pai comprô dois aliança marca fina - Ka tem ninguém si ma bô.
Preto é Ómem com O grandi. Preto é caçador di bondade e compaixão pra todu gente. Preto é felicidadi em cada suspiro.

A História da Lurdinhas

11 outubro, 2010
por Rosa Pires

Dizia-se parteira, mas em part-time era fadista. Lurdinhas tinha um ar feminino robusto, os seus seios fartos revelavam ser bom garfo, de prato cheio. Durante a madrugada, levanta-se prontamente e mesmo antes da jejua pegava na sua dita agenda, rabiscos de papel no bolso do avental, para ver quantos bebés iria ajudar hoje a nascer.

Tinha um marido de bigode farfalhudo, fanático por ópera. Quando as parturientes iam lá a casa, o de seu nome Inácio, gabarolava-se imediatamente da sua voz de tenor e de, no passado, ter tido a possibilidade de se juntar ao coro polaco da orquestra metropolitana da Prússia (como ninguém dominava estes assuntos, Inácio inventava sempre novas variantes do nome do coro. Verdade verdadinha, na escola tinha cantado com os meninos da igreja, aos domingos). Inácio aquecia sempre a sua voz no talho, antes de abrir as portas à população e de afiar as facas. Por vezes, chegava mesmo a dilatar a goela e entoar uma nota de cana rachada com um naco de bovino na mão, apontando-o para os céus, como quem pede a bênção divina por tal dom.
Da história de amor de Lurdinhas e Inácio, nasceram três rebentos, dois dos quais raparigas e um rapaz. Seguindo ou não as pegadas da mãe, as varãs aspiravam a ser parteiras e o varão queria ser fadista… ou cantor de ópera, como o seu pai.
Mas à noite de sexta-feira… A noite de sexta-feira era a competição das galinhas emproadas, como quem diz, as mulheres que se enfeitavam até à exaustão para mostrarem a sua beleza ostensiva e extensiva, dado que era da cabeça aos pés. Carregavam nos vermelhos e roxos, pretos e violetas. De olhos muito pintados, com pedaços de rímel, mal dava para perceber os contornos, pois tudo parecia uma mancha escura e míope, dado o esforço que as donas faziam para perceber o que estava meio palmo à frente dos seus narizes. As roupas, essas, vinham a combinar com a pintura, normalmente composta por uma blusa escura justa aos seios e barriga… ora, a barriga ultrapassava os limites das ancas, e a bem ou a mal as donas de casa faziam de gato-sapato para poderem caber na fatiota, tentando encaixar os chouriços e morcelas que tinham enfardado nessa semana. Tudo era motivo de festa e, cabendo ou não na roupa, de alguma forma toda a gente acabava bem apresentada e sentada nas mesas, de taça de tinto na mão e palito no canto da boca, prontos a ouvir a Lurdinhas. Era tão conhecida e cantadeira que nenhuma outra ousaria em fazer-lhe frente nos concursos. Quase que daria para pôr a Lurdinhas como património nacional. E quando os dedos começavam a arranhar as cordas das guitarras, as lágrimas começavam a cair.
“Oh rrruuuuua dooooo Ccaaaaaaaaaaapelãããããããaaaooooooo…..”. A querida Lurdinhas gostava sempre de arrastar as vogais, para dar alma ao que estava a cantar. E a plateia aplaudia, gritava, chorava, atirava moedas e flores… um verdadeiro festival. E no final, a fadista fazia sempre três encores, as pérolas pedidas do povo. E a noite estendia-se pela velha Alfama afora, terminando sempre com garrafas partidas, puxões de cabelos e acertos de contas entre gatas assanhadas.
Dizia-se parteira, mas na realidade ela gostava era de cantar o fado.

Gosto de ti!

30 setembro, 2010
por Rosa Pires

Gosto de ti, sempre. Mesmo quando estás furioso comigo e te queixas das minhas distracções
- Voltaste a deixar a luz acesa onde andas com a cabeça
Cada cabeça, cada sentença, já dizia o pai. O meu pai tem dois corações. O de mãe e o de pai. Quando éramos pequenos, fazíamos de JC em cima do muro alto, com uma base muito pequena de apoio para os pés. Parecia que íamos cair, mas o pai não deixava. Dávamos gargalhadas, sentíamos o movimento do intestino com o medo de cair. Mas o pai não deixava,
- cair
A casa já não é a mesma, o cheiro é diferente, os meus olhos mudaram? Está quase a nascer, mas ainda não saiu. A casa está mudada, não a reconheço. Tudo arranjado e preparado
- Tomás
só mexe,
- Tomás
digo para ele,
- Tomás, consegues ouvir-me?
só mexe
De volta a ti. Ouvimos o som da respiração e da ventoinha nas noites quentes de Agosto. Gosto de ti sempre, mesmo nas noites quentes de Agosto. Mas chega-te para lá que estás a ocupar muito espaço na cama. Só almofadas mal te vejo, quem és tu? Eu sou dois corações que batem no mesmo corpo. Nunca pensei que fosse possível, muda-se a letra da canção de dois amores. Estou cansada e a barriga expande de vida e movimento, o tempo não pára e o pai não deixa
- cair
Pai, vamos comprar gomas à Costa. Vamos sujar-nos para o tigre da Malásia e esconder as minhas cuecas sujas da infância. O João leva a fisga, não vá a aparecer um gato pelo caminho. O tempo não pára e agora o pai leva o
- Tomás, estás aí?
(claro que está, só mexe e de vez em quando passa pelo sono)
a mãe perguntava, ainda tens os olhos azuis? Oh mãe, nunca os tive
(Posso pôr lentes de contacto? E fazer um piercing?)
Já não nos vemos há muito tempo, desde o sonho da semana passada. As águas até rebentaram e saiu meio oceano. Mas o leãozinho continua lá dentro,
- Pai, as gomas e um gelado que vais ser bisavô, a Margarida não tarda está aí.
Gosto de ti quando me apresentas como tua mulher e anuncias que vais ser pai. Lembras-te quando dizias que tinhas medo. Medo é que Portugal perca o Mundial e se acabem os tremoços. Agora vamos abraçar-nos e caminhar pelo jardim. Pode ser que o Tomás apareça.

A Casa de Nocah

23 julho, 2010
por Rosa Pires

A casa de Nocah não tinha tecto. Apenas um espesso círculo de parede barrenta de cinco metros e dois contornos de portas compunham tal poiso. O céu azul luminoso fundia-se com a pele dos corpos que por ali passavam, pois não existiam fronteiras nem limites. A olho nú e de mão aberta com braço estendido, alcançava-se o infinito. O chão era de terra batida, onde se enraizavam dois colchões de palha e folhas de bananeira, três alguidares e alguns utensílios de cozinha. No entanto, este local, que à vista desarmada se assemelha a uma ruína do Paleolítico, era ponto de contacto de afectos.

Toda a gente da aldeia conhecia a Dona Preta. Velha, enrugada, muito sábia e de sorriso sempre pronto nos lábios, à Dona pertencia a casa de Nocah. Nocah significava “conto”, palavra com origem num crioulo arcaico, ainda do tempo da sua avó. Eram bem conhecidas as histórias da Preta, dizia ela sorrindo, “Estória qui mininos péde todos os dia”, de tal forma que uma vez por semana os aldeãos reuniam-se na casa de Nocah e partilhavam entre si a atmosfera mágica de mergulhar em cada conto.

Quando um dia lhe perguntaram a idade, ela respondeu “80 ciclo di lua e um espeto nos pé”. Realmente os seus pés tinham um aspecto cansado, como o trabalho árduo de enxada que castiga as mãos já calejadas. As pernas pareciam troncos de árvores, cobertas por uma saia de fazenda laranja que lhe chegava às canelas. Era uma mulher de ancas largas e a robustez do ventre e dorso faziam crer que muitos ciclos de lua ainda iriam passar por aquele corpo. Estava coberta por uma blusa bege e um avental branco que trazia sempre imaculado. Tinha uma cor castanha escura na pele, um tom de chocolate com contornos melosos, um fio de missangas ao peito e uns olhinhos verdes fogosos. Sobre o cabelo, um lenço verde-mar que lhe escondia a calvície.

Era uma mulher feiticeira. Emanava em si uma energia mística e, sem saber ao certo como, cada pessoa nova que aparecia na sua casa, ficava contaminada, com o coração quente. E a sua casa estava sempre aberta, como dois braços a uma criança, a quem a quisesse visitar, fosse dia ou noite. Punha apenas uma cortina a cobrir as entradas, para poder descansar, semi deitada na sua poltrona de verga e poder apreciar o céu estrelado, “como não tém em ninhum mais lugar do mundo”. Mas rara era a noite em que ficava sozinha, pois a casa era de qualquer um que lá passasse e a Dona era apenas a sua guardiã. As crianças corriam com uma mantinha para junto da feiticeira a quem tratavam por avó, para se sentirem de pés aquecidos.

Mesmo para quem só tem uma casa de barro, tudo o resto é dispensável. Nocah era conto com afecto, transmitido pela boca que o sabe entoar. Em Nocah não é preciso mais do que um coração sintonizado com a música da avó. “Si entra no lado do Sol, é gente qui pricisa di aterrá. Si vém por o lado di Chuva, é gente qui qué energia di vivê. Nocah é rócár (local) di passagi, di transformação, di dispidida do velho e boa vinda do qui é novo”.

Nocah é abraço de compaixão por todo aquele que chega e parte. Nocah é sorriso de ternura mesmo em dias de tempestade. “Us pé faz o caminho. Cabéça di vento, mas coração di cafuné”.

Tomás

13 julho, 2010
por Rosa Pires

Atribuíram-lhe o nome de Tomás sem saber ao certo porquê.

Diziam ser o nome de um guerrilheiro Japonês que mais tarde se tinha tornado um conhecido pacificador do seu país. Desde cedo que Tomás prometia ser um gaiato enérgico, não fosse a sua mãe queixar-se dos protótipos de artes marciais que praticava quando ainda no seu ventre.

Mal nascido, revelava já nos seus olhos a doçura dos do seu pai – uma íris bem grande e preta, pestanas longas e expressivas. Da mãe tinha o nariz, pequenino e pontiagudo. As bochechas rosadas davam-lhe ares de saúde e revelavam a harmonia do lar envolvente. A boca raramente se lhe via, pois o apetite voraz colocava-o como ventosa no seio materno. E mal de nós pensar que um ser acabado de se iluminar não possuía a força da vida para sugar o seu próprio alimento...! Por vezes cansava-se e adormecia docemente, quando ainda a sua refeição ia apenas a cinco golos do início.

Tomás era um rapaz diferente. Se pensavam que as suas primeiras palavras iriam ser “Mã” ou “Pá”, enganam-se redondamente. Intenções verbais, tinha muitas. Mesmo sem falar, já fazia sentir as suas exigências e preferências – não gostava de puré de brócolos, pois a maior parte da papa brotava da sua boca, como quem faz balões com pastilha. Mas a surpresa foi no dia em que esboçou um grande sorriso, acompanhado de um grito, enquanto olhava da sua cadeira, para a cadela. “Onda”, disse. Ficámos tontos a olhar o nosso filho. Surpreendidos e sem palavras, pois o diálogo era entre a Onda e o Tomás. Ao que parece, farejando e aproximando-se lentamente, como quem quer passar despercebida, a Onda chega-se à cadeira do Tomás, na expectativa que o alimento caia dos céus, como a chuva. Por vezes tem sorte. Há quem diga que é o destino.

Agarrando a sua colher e vagueando curiosamente pela comida, o Tomás faz arte com os alimentos e por vezes, ou na maior parte das vezes, chega mesmo a maquilhar-se com o que tem à mão. E todo o corpo come e o acompanha nesta divertida exploração – palavras houvesse para descrever a forma como se entusiasma nas horas longas de refeição. Embora goste de provar novos sabores de forma independente, tal como o pai, o que o atrai são as misturas. E então, como druida que compõe a poção mágica, o fiel aspirante a cozinheiro saboreia as suas combinações culinárias e sorri. Ri e abana os braços. De quando em vez, a coordenação falha e em vez da colher se dirigir à boca, faz uma tentativa falhada à testa ou mesmo ao chão. Felicidade é a da Onda, nestas horas de banquetes servidos alguns palmos acima do seu pêlo.

Chegamos a ficar indecisos quanto ao banho… não chegamos a perceber onde começa o Tomás e onde terminam os seus bombardeamentos de comida. No final, ele e o chão têm as mesmas cores. Então, antes que adormeça lambuzado e em tons amarelos e verdes, tentamos não nos enganar e pôr o pequeno na máquina de lavar a roupa e a roupa na banheira. Embora cansado de tanta criatividade, a fonte inesgotável de energia ainda se mantém activa no banho. E são apenas dezoito meses de idade.

Será que vai ser assim?