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Sejam bem-vindos ao espaço onde através da brincadeira e do conhecimento nos expandimos como seres humanos. O local onde a Família não se resume aos laços de sangue mas essencialmente aos laços do Coração.



A Casa de Nocah

23 julho, 2010
por Rosa Pires

A casa de Nocah não tinha tecto. Apenas um espesso círculo de parede barrenta de cinco metros e dois contornos de portas compunham tal poiso. O céu azul luminoso fundia-se com a pele dos corpos que por ali passavam, pois não existiam fronteiras nem limites. A olho nú e de mão aberta com braço estendido, alcançava-se o infinito. O chão era de terra batida, onde se enraizavam dois colchões de palha e folhas de bananeira, três alguidares e alguns utensílios de cozinha. No entanto, este local, que à vista desarmada se assemelha a uma ruína do Paleolítico, era ponto de contacto de afectos.

Toda a gente da aldeia conhecia a Dona Preta. Velha, enrugada, muito sábia e de sorriso sempre pronto nos lábios, à Dona pertencia a casa de Nocah. Nocah significava “conto”, palavra com origem num crioulo arcaico, ainda do tempo da sua avó. Eram bem conhecidas as histórias da Preta, dizia ela sorrindo, “Estória qui mininos péde todos os dia”, de tal forma que uma vez por semana os aldeãos reuniam-se na casa de Nocah e partilhavam entre si a atmosfera mágica de mergulhar em cada conto.

Quando um dia lhe perguntaram a idade, ela respondeu “80 ciclo di lua e um espeto nos pé”. Realmente os seus pés tinham um aspecto cansado, como o trabalho árduo de enxada que castiga as mãos já calejadas. As pernas pareciam troncos de árvores, cobertas por uma saia de fazenda laranja que lhe chegava às canelas. Era uma mulher de ancas largas e a robustez do ventre e dorso faziam crer que muitos ciclos de lua ainda iriam passar por aquele corpo. Estava coberta por uma blusa bege e um avental branco que trazia sempre imaculado. Tinha uma cor castanha escura na pele, um tom de chocolate com contornos melosos, um fio de missangas ao peito e uns olhinhos verdes fogosos. Sobre o cabelo, um lenço verde-mar que lhe escondia a calvície.

Era uma mulher feiticeira. Emanava em si uma energia mística e, sem saber ao certo como, cada pessoa nova que aparecia na sua casa, ficava contaminada, com o coração quente. E a sua casa estava sempre aberta, como dois braços a uma criança, a quem a quisesse visitar, fosse dia ou noite. Punha apenas uma cortina a cobrir as entradas, para poder descansar, semi deitada na sua poltrona de verga e poder apreciar o céu estrelado, “como não tém em ninhum mais lugar do mundo”. Mas rara era a noite em que ficava sozinha, pois a casa era de qualquer um que lá passasse e a Dona era apenas a sua guardiã. As crianças corriam com uma mantinha para junto da feiticeira a quem tratavam por avó, para se sentirem de pés aquecidos.

Mesmo para quem só tem uma casa de barro, tudo o resto é dispensável. Nocah era conto com afecto, transmitido pela boca que o sabe entoar. Em Nocah não é preciso mais do que um coração sintonizado com a música da avó. “Si entra no lado do Sol, é gente qui pricisa di aterrá. Si vém por o lado di Chuva, é gente qui qué energia di vivê. Nocah é rócár (local) di passagi, di transformação, di dispidida do velho e boa vinda do qui é novo”.

Nocah é abraço de compaixão por todo aquele que chega e parte. Nocah é sorriso de ternura mesmo em dias de tempestade. “Us pé faz o caminho. Cabéça di vento, mas coração di cafuné”.

1 comentários:

Fórum Ipsilon disse...

Este é um conto maravilhoso! Adorei-o! Fez-me sonhar e desejar conhecer esta mística mulher! Ser tocada pela sua bondade e sabedoria! A casa de Nocah deve prevalecer como um sítio mágico para guardarmos no cantinho do calor e da amizade dentro de nós... e nele irmos buscar forças para renascer todos os dias!

Catarina Rodrigues

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