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Sejam bem-vindos ao espaço onde através da brincadeira e do conhecimento nos expandimos como seres humanos. O local onde a Família não se resume aos laços de sangue mas essencialmente aos laços do Coração.



A História da Lurdinhas

11 outubro, 2010
por Rosa Pires

Dizia-se parteira, mas em part-time era fadista. Lurdinhas tinha um ar feminino robusto, os seus seios fartos revelavam ser bom garfo, de prato cheio. Durante a madrugada, levanta-se prontamente e mesmo antes da jejua pegava na sua dita agenda, rabiscos de papel no bolso do avental, para ver quantos bebés iria ajudar hoje a nascer.

Tinha um marido de bigode farfalhudo, fanático por ópera. Quando as parturientes iam lá a casa, o de seu nome Inácio, gabarolava-se imediatamente da sua voz de tenor e de, no passado, ter tido a possibilidade de se juntar ao coro polaco da orquestra metropolitana da Prússia (como ninguém dominava estes assuntos, Inácio inventava sempre novas variantes do nome do coro. Verdade verdadinha, na escola tinha cantado com os meninos da igreja, aos domingos). Inácio aquecia sempre a sua voz no talho, antes de abrir as portas à população e de afiar as facas. Por vezes, chegava mesmo a dilatar a goela e entoar uma nota de cana rachada com um naco de bovino na mão, apontando-o para os céus, como quem pede a bênção divina por tal dom.
Da história de amor de Lurdinhas e Inácio, nasceram três rebentos, dois dos quais raparigas e um rapaz. Seguindo ou não as pegadas da mãe, as varãs aspiravam a ser parteiras e o varão queria ser fadista… ou cantor de ópera, como o seu pai.
Mas à noite de sexta-feira… A noite de sexta-feira era a competição das galinhas emproadas, como quem diz, as mulheres que se enfeitavam até à exaustão para mostrarem a sua beleza ostensiva e extensiva, dado que era da cabeça aos pés. Carregavam nos vermelhos e roxos, pretos e violetas. De olhos muito pintados, com pedaços de rímel, mal dava para perceber os contornos, pois tudo parecia uma mancha escura e míope, dado o esforço que as donas faziam para perceber o que estava meio palmo à frente dos seus narizes. As roupas, essas, vinham a combinar com a pintura, normalmente composta por uma blusa escura justa aos seios e barriga… ora, a barriga ultrapassava os limites das ancas, e a bem ou a mal as donas de casa faziam de gato-sapato para poderem caber na fatiota, tentando encaixar os chouriços e morcelas que tinham enfardado nessa semana. Tudo era motivo de festa e, cabendo ou não na roupa, de alguma forma toda a gente acabava bem apresentada e sentada nas mesas, de taça de tinto na mão e palito no canto da boca, prontos a ouvir a Lurdinhas. Era tão conhecida e cantadeira que nenhuma outra ousaria em fazer-lhe frente nos concursos. Quase que daria para pôr a Lurdinhas como património nacional. E quando os dedos começavam a arranhar as cordas das guitarras, as lágrimas começavam a cair.
“Oh rrruuuuua dooooo Ccaaaaaaaaaaapelãããããããaaaooooooo…..”. A querida Lurdinhas gostava sempre de arrastar as vogais, para dar alma ao que estava a cantar. E a plateia aplaudia, gritava, chorava, atirava moedas e flores… um verdadeiro festival. E no final, a fadista fazia sempre três encores, as pérolas pedidas do povo. E a noite estendia-se pela velha Alfama afora, terminando sempre com garrafas partidas, puxões de cabelos e acertos de contas entre gatas assanhadas.
Dizia-se parteira, mas na realidade ela gostava era de cantar o fado.